Relato pessoal
Letramento de mundo
O letramento de mundo não se limita ao aprendizado escolar. Ele forma pessoas capazes de sentir, perceber, respeitar e agir com consciência. É o tipo de saber que molda o caráter, afina a escuta e ensina que viver também é um ato de leitura, leitura da vida, do outro, de si mesmo. Foi assim que aprendi: não apenas em salas com lousa e caderno, mas também com os pés descalços na terra quente e as mãos cheias de calo.
Cresci na roça, numa casinha simples, cercada por mato, fogão à lenha e cheiro de café recém-coado. Desde cedo, meu mundo era feito de tarefas e ensinamentos: ajudar a mãe a fazer bejú, catar lenha no mato, plantar e colher junto com meu pai. A escola era importante, claro, mas foi a vida que me alfabetizou primeiro. Lembro das manhãs em que saíamos cedo pra roça. Para plantarmos milho, e meu pai dizia: “Coloque na terra, somente três caroços, é o suficiente” E eu escutava, mesmo sem entender direito. Era assim que ele me ensinava a ler o tempo da natureza, a reconhecer o barulho da chuva chegando, a sentir o cheiro da planta pronta pra colher.
Na cozinha, a mãe me passava outros saberes. Eu a via mexendo a goma do bejú na panela de barro com paciência. E quando eu inventava de sair correndo no vento depois de tomar café quente, vinha logo o aviso da vó: “Vai voltar com a barriga doendo! Vento e calor não combinam, cada coisa no seu tempo.” Ou então, quando pegava a vara pra derrubar manga ainda verde do pé para comer com sal , ela nem precisava levantar a voz: “Fruta verde não se força, menina. A vida também tem hora certa de amadurecer.” Naquele tempo, eu não via isso como aprendizado. Mas hoje percebo o quanto aqueles conselhos me ensinaram a escutar o mundo. Aprendi a observar, a esperar, a ter cuidado. Aprendi que nem tudo se resolve com pressa, que a vida tem ciclos como as estações. Esse foi o meu primeiro letramento: não o das palavras, mas o da vida.
Hoje, mesmo longe da roça, carrego esses saberes comigo. Eles estão na forma como olho o outro, como escuto o silêncio, como respeito o tempo das coisas. Porque letrar-se no mundo é isso: é entender que há sabedorias que não se escrevem, mas que se guardam no corpo e no coração , como o cheiro do bejú quente ou a lembrança da terra sob os pés.
por Valdinea Santana
Bem profundo 🥺
ResponderExcluirUau,que lindo!👏🏻👏🏻
ResponderExcluirPerfeito eu amei!!!
ResponderExcluirmuito lindo 👏🏼
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